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Empresa emergente descobre nova forma de tratar autismo

Criança falando em microfone frente a um cartaz
Uma criança com autismo se apresenta durante um evento na véspera do "Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo" organizado por ONGs em Bangalore, Índia, 01 de abril de 2018. Epa / Jagadeesh Nv

Stalicla, uma startup genebrina, recorre a algoritmos para definir perfil biológico de cada grupo de autistas e, assim, identificar fármacos mais eficazes. O ensaio clínico do primeiro pacote terapêutico da empresa aguarda luz verde da agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos.

Lynn Durham tem 36 anos e está à frente de uma startup que ambiciona fazer aquilo que nenhuma grande farmacêutica conseguiu até agora: desenvolver drogas capazes de tratar os sintomas centrais do autismo. Há outras empresas na corrida, mas Durham garante que a Stalicla é a única que vê o autismo no plural. “Não existe autismo, mas sim autismos. Se tentarmos desenvolver um só tratamento para todos os autistas, vamos fracassar. Temos de identificar as causas biológicas de cada autismo para oferecer os fármacos certos para cada grupo de pacientes”, defende a diretora da Stalicla, uma empresa criada há menos de dois anos em Genebra.

A aposta da Stalicla alia a medicina personalizada à utilização de algoritmos capazes de analisar e filtrar um grande volume de dados.  Esta combinação permitiu a criação um pacote terapêutico para aliviar os sintomas principais de um subgrupo de autismo, que corresponde a cerca de um quinto da população autista. Um pedido de ensaio em carácter de urgência será submetido à FDA (a agência federal que regula os medicamentos nos Estados Unidos) e, se tudo correr como Durham prevê, o primeiro teste clínico poderá começar no início de 2020.  Caso fique demonstrado nas três fases de teste clínico que tais moléculas são seguras e eficazes, o tratamento poderá ser comercializado a partir de 2025. 

Como é o autista?

Os sintomas centrais do Transtorno do Espectro Autista (TEA) são a dificuldade de comunicação e interação social, assim como a presença de comportamentos ou interesses repetitivos e rígidos. Cada pessoa autista terá uma combinação e um grau diferente destas características principais. E daí a ideia de espectro, ou seja, uma escala vasta o suficiente para incluir tanto o adolescente verbal que vai sozinho para a escola como a moça não verbal que precisa de apoio em todas as tarefas quotidianas. Além dos sintomas centrais, os autistas podem ter ou não problemas associados (comorbidades) como epilepsia, alergias e dificuldades motoras, cognitivas, gastrointestinais e de processamento sensorial. Uma vez diagnosticados, fazem todos hoje parte do mesmo espectro – mas será que têm o mesmo tipo de autismo? 

“Começa a surgir um consenso de que o autismo reúne um grupo heterogêneo de pacientes. Apesar disso, recrutam-se pessoas para os ensaios clínicos unicamente com base nos critérios de diagnóstico quando a única coisa que estes indivíduos têm em comum é um desenvolvimento atípico do cérebro”, observa Lynn Durham. 

Ainda não existem marcadores biológicos fiáveis que permitam confirmar o TEA com um simples teste. Assim, o diagnóstico de crianças continua baseado em observações clínicas e informações facultadas pelos pais. Todos os indivíduos que cumpram os critérios de diagnóstico previstos em 2013 pelo DSM-5 estão cobertos pelo gigantesco guarda-chuva do autismo. O DSM-5 é a quinta edição do manual de diagnóstico de transtornos mentais elaborado pela Associação Norte-Americana de Psiquiatria, um documento que serve de referência para os serviços de saúde internacionais. 

Quais são as causas do autismo? 

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma perturbação do neurodesenvolvimento que resulta de uma complexa equação biológica na qual fatores ambientais também podem estar presentes. Os cientistas ainda não conseguiram explicar com precisão os mecanismos que estão na origem da condição, mas é certo que o TEA tem um forte componente genético. Nenhuma criança é autista porque os pais são frios ou pouco atenciosos, como foi sugerido por especialistas nos anos 40 e 50.  Não há qualquer evidência de associação causal entre vacinas infantis e autismo. 

O autismo tem cura?  

Não. Mas existem terapias psicológicas comprovadas que estimulam a autonomia, comunicação, interação social e capacidade cognitiva. Quanto mais cedo começar a intervenção precoce, melhor o prognóstico. Os medicamentos usados hoje tratam apenas os sintomas associados à condição, como a ansiedade, a irritabilidade e o déficit de atenção. O eventual surgimento de fármacos capazes de tratar os sintomas centrais do autismo não substituirá a intervenção precoce – pelo contrário, potenciará os seus efeitos.

O número de casos está aumentando? 

Sim. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, uma em cada 59 crianças em idade escolar (8 anos) é autista, sendo esta condição quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas. A prevalência tem aumentado desde 2002. Não há dados oficiais sobre a prevalência do autismo na Suíça, mas o pedopsiquiatra Stephan Eliez sublinha que não há razões para acreditar que os números suíços estejam muito distantes da realidade dos Estados Unidos. Eliez conta que durante as férias esteve em Cabo Verde e, curiosamente, não viu nenhum caso de TEA em todos os lugares que visitou na ilha africana. “Hoje você vai a uma escola em Genebra e vê certamente no pátio crianças autistas. O mesmo não acontece em Cabo Verde, onde as mulheres são mães muito jovens. Na Suíça, vemos claramente que o número de casos está aumentando. Por que razão? A idade parental é um dos fatores envolvidos”, afirma o especialista. Entre as explicações possíveis estão aspectos ligados à exposição a certas substâncias (pesticidas, por exemplo) durante a gravidez, o aumento da utilização da fertilização “in vitro” e um número maior de nascimento de bebês prematuros. As mudanças de critério de diagnóstico também podem contribuir para esse aumento. Estima-se que 1 a 2 por cento da população da Ásia, da Europa e da América do Norte seja autista.  

O desafio da Stalicla está justamente em olhar para este grande conjunto de pacientes e conseguir dividi-lo em diferentes grupos consoante a genética e a história clínica de cada paciente. O que importa para a empresa genebrina é a biologia, com particular atenção às comorbidades, e não o comportamento. Se quisermos fazer uma comparação grosseira, podemos pensar num grupo de crianças aparentemente homogêneo. Todas choram e recusam-se a participar nas atividades. Apresentam ainda febre, mal-estar e falta de apetite. Embora todas se comportem da mesma forma, umas estarão com dor de garganta causada por um vírus e outras por uma bactéria, havendo ainda um terceiro grupo que terá gripe. Em resumo: sintomas e comportamentos semelhantes podem ter razões biológicas diferentes. Para tratar corretamente cada criança, teremos de identificar a causa. Assim será também com o autismo, embora a complexidade incrivelmente maior. 

Medicina “personalizada” é o futuro

O pedopsiquiatra Stephan Eliez, diretor do Gabinete Médico-Pedagógico de Genebra (OMP, na sigla em francês) e da Fundação Pôle Autisme, não conhece as moléculas propostas pela Stalicla e, por isso, não pode avaliar o quão promissora é a aposta da empresa suíça. Mas não tem dúvidas de que o futuro do tratamento do autismo passa pela chamada medicina de precisão (ou “personalizada”), a exemplo do que já acontece com a terapia oncológica. Sabemos hoje que há subtipos de câncer que não respondem a determinadas quimioterapias e, em função do perfil dos pacientes, os médicos escolhem as drogas mais adequadas. 

Rosto de Lynn Durham
“Começa a surgir um consenso de que o autismo reúne um grupo heterogéneo de pacientes….”, observa Lynn Durham. swissinfo.ch

“É uma certeza que esta abordagem [centrada no perfil do paciente] é o futuro. O objetivo é tratar a causa neurofuncional do autismo ao nível da sinapse”, afirma o pedopsiquiatra. A sinapse é o lugar onde acontece a comunicação entre as células nervosas, uma região de proximidade entre um neurônio e outra célula por onde é transmitido o impulso nervoso. No cérebro autista, há alterações sinápticas que levam a um funcionamento cerebral diferente. Contudo, as causas dessas alterações não são as mesmas em todos os autistas. “Se sabemos que o paciente tem uma determinada microdeleção [isto é, perda de uma pequena parte do DNA de um cromossomo], no futuro vamos dar, o mais cedo possível, um medicamento que regularize a questão metabólica que a provoca”, exemplifica Eliez. 

Para conseguir estratificar a população autista, a Stalicla recrutou cientistas especializados na análise de um grande volume de dados.  Esta equipe desenvolveu um algoritmo capaz de identificar biomarcadores específicos e possíveis alvos terapêuticos que, em seguida, são comparados com os repositórios de medicamentos existentes. Assim, a Stalicla espera localizar drogas potencialmente reutilizáveis. 

A Stalicla já identificou dois subtipos de pacientes e encontrou moléculas capazes de tratar um desses grupos (chamado pela empresa “fenótipo 1”). Este primeiro pacote terapêutico consiste em duas moléculas pequeninas: uma delas permite a regulação de vários processos desregrados dentro das células, ao passo que a segunda tem como função prolongar o efeito terapêutico. 

Em 2018, a Stalicla realizou um estudo observacional com 313 pacientes em parceria com o Greenwood Genetic Center, nos Estados Unidos. “Demonstramos que o nosso fenótipo 1 realmente existe e tem significância estatística”, diz Durham. Foram guardadas linhas celulares dos pacientes para dar continuidade à investigação “in vitro” em Barcelona, Espanha, onde também se realizam estudos com modelos animais. 

O autismo não é uma doença

A associação Autismo Genebra vê com bons olhos este tipo de investigação na área das neurociências, que pode levar não só ao desenvolvimento de novas terapias, mas também a uma melhor compreensão da condição. Contudo, esta organização de famílias e profissionais ligados ao autismo alerta para o risco de reforçarmos a ideia de que a neurodiversidade é uma doença. 

“Encorajamos toda a pesquisa científica que tenha como objetivo a melhoria da qualidade de vida e o aumento da autonomia das pessoas autistas e, por isso, ficamos contentes por saber que em Genebra há uma empresa trabalhando nessa área. Contudo, achamos que é preciso ter algum cuidado quando se adota um discurso farmacológico que descreve o autismo como uma doença ou algo a ser combatido. O autismo não é uma doença. Não queremos que os autistas sejam como nós somos, queremos que eles possam ser incluídos, que possam viver conosco com mais autonomia e bem-estar”, afirma Filippo Passardi, membro do comitê da associação Autismo Genebra, pai de um adolescente autista e especialista em biologia molecular. O comitê da associação genebrina é composto por nove pessoas, incluindo pais, profissionais de saúde e um membro autista. 

Lynn Durham recorda que a abordagem que a Stalicla propõe visa precisamente a redução da severidade dos sintomas, promovendo assim a aprendizagem e a independência. “Não propomos a cura do autismo nem vamos impor medicamentos a ninguém. Se há um grupo de pacientes que se sente bem e pensa que não beneficiará da terapia, eu compreendo. Mas há um outro grupo em sofrimento que não pode hoje falar por si mesmo”, sublinha Durham, que tem tido um contato pessoal com a comunidade autista desde a infância. 

Lynn Durham é filha de pai norte-americano e mãe francesa, ambos profissionais de saúde dedicados ao autismo. O interesse pelas neurociências advém do ambiente que a rodeou em casa. Com formação em ciência política e história económica, a fundadora da Stalicla trabalhou no Fórum Económico Mundial, no parque de inovação da Escola Politécnica Federal de Lausanne e, por fim, na Universidade de Genebra, onde ganhou experiência em parcerias público-privadas para dar aplicações clínicas à ciência fundamental. Este ano, Durham conta concluir uma pós-graduação em ensaio clínico e desenvolvimento de drogas. A dissertação final versará, claro está, sobre o projeto que consome a maior parte do tempo e da energia da jovem empreendedora. 

Uma nova startup

Stalicla foi criada em maio de 2017 no Campus Biotech de Genebra. Menos de dois anos depois, a empresa anunciou a conclusão “bem-sucedida” da primeira ronda de financiamento, obtendo uma promessa de investimento de 10 milhões de francos por parte de um consórcio privado e de investidores do setor biotecnológico.  A Stalicla tem atraído a atenção não só dos investidores, mas também da imprensa especializada.

O diário económico genebrino AGEFI sublinhou o “crescimento rápido” da Stalicla e a revista econômica Bilan elegeu a Stalicla como uma das empresas a investir em 2018. A startup conta com uma equipe de 14 profissionais divididos entre a Suíça, os Estados Unidos e a Espanha. 

A Stalicla não é a única empresa interessada no desenvolvimento de um fármaco capaz de tratar os sintomas centrais do autismo. Farmacêuticas como a Roche, a Servier e a Yamo estão trabalhando nesse domínio, mas ao contrário da Stalicla não apostam em drogas diferentes para cada subgrupo.

Se reduzirmos o número de potenciais consumidores, será que o fármaco continua atrativo aos olhos dos investidores? Por que investir numa fatia do mercado se podemos ficar com o bolo todo? “Porque não se pode ter o bolo todo com o autismo, e cada fatia continua a representar um mercado com grande potencial. Segundo as nossas estimativas, só o primeiro grupo abrange cerca de 1,2 milhões de pacientes na Europa e nos Estados Unidos”, garante Lynn Durham.

A CEO da Stalicla lembra ainda que a abordagem proposta não é curativa, ou seja, implica o consumo do fármaco durante um longo período. 

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