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A exuberância que chocou os suíços

Journal du Jura
O "Journal du Jura" foi um dos jornais da época que publicavam cartas dos colonos suíços que haviam partido para o Brasil. Archives de l'Ancien Archeveché de Bâle

A história da imigração europeia organizada para o Brasil está diretamente relacionada à instalação da Corte portuguesa no país e à questão dos escravos. A historiadora Gisele Sanglard analisou as percepções da nova vida no Brasil dos primeiros colonos suíços através das cartas enviadas por eles a seus familiares na Suíça.

A primeira experiência levada a cabo pela Coroa portuguesa no Brasil foi a criação da colônia de Nova Friburgo, em 1819, nas cercanias da capital, e que recebeu cerca de um milhar de colonos suíços católicos.

A colônia de Nova Friburgo teve papel bem definido na política joanina: ao mesmo tempo que promovia o povoamento, minimizava a insegurança gerada pelo grande contingente de negros no Rio de Janeiro, pois aumentava a presença quantitativa do elemento branco nas imediações da Corte. Essa foi uma colônia pautada na pequena propriedade, podendo assim aumentar a produção de variedades de gêneros alimentícios para a capital. O papel do imigrante europeu seria, assim, o de promover e dilatar a civilização do vasto reino e o crescimento de habitantes preparados a diversos gêneros de trabalhos.

É nessa perspectiva que deve ser entendida a escolha do local de fixação da colônia nas cercanias da Corte e em uma região não destinada à agroindústria cafeeira. As cláusulas do contrato previam a criação de uma cidade que contaria, desde a partida da Suíça, com a maior diversidade de profissionais considerados essenciais (carpinteiros, ferreiros etc.), e que, além de exercerem suas profissões, deveriam ensiná-las aos portugueses, buscando assim uma integração da colônia com a vida no Brasil.

Essa cláusula do contrato de imigração permite que se observe claramente a tentativa de se criar uma cidade em que as necessidades básicas fossem plenamente atendidas, criando-se uma estrutura que tenderia a aglutinar, e não a expulsar seus habitantes. Dessa forma, Nova Friburgo responderia ao projeto político da Corte: fixação do homem europeu nos arredores da capital, aumento da quantidade e da diversidade de víveres destinados ao Rio de Janeiro e incentivo à civilização dos trópicos.

No artigo “De Nova Friburgo a Fribourg através das letras: a colonização suíça vista pelos próprios imigrantes”, esse projeto civilizatório é analisado por uma descendente de uma das famílias suíças que vieram para o Brasil através das percepções dos colonos suíços sobre a vida nos trópicos enviadas por cartas a seus familiares e amigos que ficaram na Suíça. Por ocasião dos 200 anos da formação de Nova Friburgo, a historiadora Gisele Sanglard falou um pouco dessa história para swissinfo.ch.

swissinfo.ch: Nova Friburgo é mesmo a primeira colônia de suíços no Brasil?

Gisele Sanglard: Sim, Nova Friburgo é a primeira colônia Suíça no Brasil e eu diria mesmo que é a primeira colônia que teve como objetivo a fixação do homem na terra.

A Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, ou Fundição Ipanema, foi uma siderúrgica que operou entre 1810 e 1926 na região de Sorocaba, no atual município de Iperó, interior do estado de São Paulo, no Brasil.

Dos altos-fornos da fundição saíram muitos dos artigos necessários ao Brasil do século XIX, de panelas de ferro a maquinário para engenhos de açúcar e café, escadas, luminárias, etc., com artigos premiados em feiras nacionais e internacionais, à época.

Considerada o berço da siderurgia nacional, a Real Fábrica de Ferro de Ipanema conserva até hoje quase 20% de seu conjunto original.

Tem uma historiadora portuguesa, a Ângela Domingues, que considera que não, que a gente tem que pensar na colônia de Ipanema, em São Paulo, que é um pouco anterior e também é fruto da política joanina. Mas ali, o objetivo foi o trabalho nas forjas da Fundição Ipanema, que era a siderúrgica real. É diferente de Nova Friburgo, que tinha como um único objetivo fixar o colono na terra. O objetivo era criar uma cidade ali com uma vida normal de cidade, sem um interesse comercial. Acho que essa é a grande diferença que Nova Friburgo inaugura no processo de ocupação do território brasileiro.

swissinfo.ch: O que estava por trás dessa enorme mobilização que foi a vinda desses imigrantes?

G.S.: A mobilização por trás disso é o medo que a coroa portuguesa passou a ter de uma revolta de negros como teve no Haiti, por exemplo, que culminou com a independência do país. Quando a coroa portuguesa chega em 1808 no Rio de Janeiro, deixando para trás a Europa devastada pelas guerras napoleônicas, o contingente populacional de brancos era infinitamente menor do que de negros na cidade do Rio de Janeiro, nova sede do império português. Então havia uma urgência em diminuir a desproporção entre brancos e negros e trazer um pouco de civilização para esse país, que tinha até então muito pouco acesso à informação. Então os suíços teriam esse papel de educar civilizacionalmente os brasileiros que moravam aqui.

Gisele Sanglard
Gisele Porto Sanglard é pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e docente do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz. swissinfo.ch

swissinfo.ch: Quem financiou esse projeto?

G.S.: Esse foi um projeto da coroa portuguesa, transmigrada e interiorizada na colônia Brasil. O Brasil se torna primeiro um porto livre e depois um império, o Reino Unido de Portugal e Algarves, e é esse grupo que permite que você tenha uma colônia de Nova Friburgo. Então, é a coroa portuguesa, são os interesses da coroa portuguesa, a gente pode chamar de um projeto da coroa portuguesa. Existiam pelo menos três projetos distintos: o da coroa portuguesa, o dos governos dos cantões suíços e o dos próprios imigrantes, que individualmente tinham seus interesses e seus projetos na hora que decidem participar dessa empresa migratória.

swissinfo.ch: O que os Suíços encontraram quando chegaram a Nova Friburgo?

G.S.: Bom, um choque cultural enorme. A natureza exuberante da Mata Atlântica foi sem dúvida nenhuma um ponto de choque para esses homens. Era completamente diferente da geografia, da topografia, da vegetação, e era uma terra selvagem. Selvagem no sentido de pouco cultivada, a presença de índios, a presença de animais silvestres, enfim eles vão ocupar. Eles vão ocupar não só no sentido de moradia, mas abrindo campos de pastagem, fazendo a roça, desenvolvendo a agricultura. Nesse sentido, eles são desbravadores. Era uma terra ainda muito inculta, uma terra muito selvagem no sentido de pouco contato com o homem branco.

swissinfo.ch: Os colonos que vieram para o Brasil mantinham contato com a Suíça?

G.S.: Essa empresa migratória mobilizou muito a imprensa suíça a partir de 1818. Logo que assinado o contrato que faz agora 200 anos, a imprensa suíça abraçou essa ideia da fundação da colônia de Nova Friburgo. Nos jornais de então, você vê uma série de reportagens divulgando essa empresa migratória que a coroa portuguesa estava montando em conjunto com o cantão de Friburgo.

Houve uma série de informações, e a partir do momento que os imigrantes chegaram ao Brasil, essa mesma imprensa – que naquele momento fez questão de chamar a atenção, de divulgar, de incentivar de alguma forma a vinda desses migrantes – se sentiu na obrigação de prestar contas a seus irmãos suíços do que tinha acontecido.

A troca de correspondência entre os que vieram para ficar aqui e aqueles que ficaram por lá foi intensa e a gente pode perceber isso, por exemplo, no Journal du Jura, que era um jornal bilíngue que circulava na época, metade escrito em francês, metade em alemão gótico, caligrafia típica do século XIX. Ele publicou várias vezes trechos de cartas desses imigrantes que vieram para cá e que davam as suas impressões do que encontraram aqui, do que que eles viram, do que que eles perceberam, de como eram suas angústias, o que eles buscavam aqui e o que eles precisavam fazer para viver. Essas cartas publicadas pelo Journal du Jura revelam o choque cultural sofrido por esses imigrantes.

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Trecho de carta publicada no “Journal du Jura”, escrita por Pierre Gendre a seus filhos, que ficaram na Suíça Archives de l’Ancien Archeveché de Bâle

swissinfo.ch: Do que essas cartas falavam.

G.S.: Essas cartas falavam do sentimento desses homens – eram principalmente homens que escreviam – falavam, por exemplo, do choque ao ver um macaco, uma cobra, uma Jaguatirica e sobretudo o índio. Ver o elemento índio, com hábitos culturais completamente diferentes, chocou bastante esses suíços. Eles falam também da moradia, de como que eram as casas que a Coroa havia construído para abriga-los.

Mas ainda antes de irem para Nova Friburgo, os colonos falam das impressões de verem os escravos. Como eles foram chegando em levas distintas, eles tiveram alguma oportunidade de circular pela cidade do Rio de Janeiro. Eles tinham que sobreviver na cidade enquanto não se instalavam de fato na colônia, o que só aconteceria depois da chegada dos últimos imigrantes.

Ver o mercado de escravos, os negros sendo escravizados, foi para eles um choque. Assistir esse encontro com o outro foi muito importante para a gente perceber como eles viam e como era a expectativa deles. Nessas cartas não há nenhuma percepção de fracasso, nem de algum sentimento de coisa ruim. Muito antes pelo contrário, eles mostram sempre uma ideia de sucesso, que o sucesso de fato vai acontecer. A esperança na realização desse sonho de riqueza, que nessa terra prometida ainda vai acontecer.

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F. Hirschy entrevistando Gisele Sanglard

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